domingo, 20 de julho de 2008

Dos Grandes Contos Que Nunca Escreverei

Diz-se que, antes de iniciar seu monumental O nome da Rosa, Umberto Eco escreveu a história de cada um dos monges que apareceriam no livro, mesmo os mais secundários.

Salinger é globalmente conhecido por seu romance mas conseguiu, em alguns contos, criar o mais sensacional retrato de um personagem - no caso, uma família - que a literatura já foi capaz de produzir.

Pois bem: um amigo está preparando um romance e me pediu para sugerir um personagem. Pragmático como Umberto Eco e ambicioso (mas infinitamente menos talentoso) como Salinger, escrevi um conto que, acredito, contém toda a essência de nosso amigo Marco Olsen, um dos grandes fregueses da livraria que será o tema do romance.


E por quê não uma pinhata cheia de bala de melão?

Ao ouvir, ao longe, a palavra Pynchon, foi ao chão. A trilha estava lisa, é verdade, mas já estava em seu terceiro dia de caminhada e ainda não havia escorregado. Certificou-se de que não havia quebrado nenhum osso, mas não gostou de ver suas meias completamente sujas de lama. Três meninas vieram ao seu encontro fazendo perguntas num norueguês que ele pouco compreendeu. Apesar de já estar no país há 6 meses, ainda era difícil entender certos sotaques de regiões mais remotas.

Respondeu que estava bem numa mistura de norueguês de Oslo — não muito bem visto em outras regiões do país — com um forte sotaque latino, o que levou as meninas às gargalhadas. Que se transformaram em sorriso ao descobrirem que era brasileiro. Era sempre bom dizer que era brasileiro. Quando viu, estava caminhando junto a elas e resolveu não perguntar nada, apenas continuar. Eram simpáticas, é verdade, mas não se poderia dizer que teriam muita chance no seu concurso interno de meninas das trilhas.

Era seu primeiro verão na Noruega e resolveu que não visitaria o Brasil. O país era outro nesta época do ano, com todas as pessoas numa felicidade tal que pareciam estar bêbadas constantemente, como se uma madrugada de sábado no Jobi se estendesse por três meses (e com o agravante de se estar rodeado de loiras maravilhosas). Havia entrado de sócio recentemente na Norwegian Trekking Association que consistia, basicamente, em uma série de cabanas espalhadas pelas montanhas onde todos os sócios têm livre acesso para pernoitar enquanto caminham pelas bem sinalizadas trilhas. Na prática, locais para se conhecer pessoas e encher a cara. Como poderia ele voltar para o Brasil e abrir mão de tal maravilha?

Os dois primeiros dias não haviam sido muito bons em conhecer pessoas, mas a paisagem compensava. Talvez fosse até melhor estar sozinho. Agora, porém, já sentia falta do contato com outras pessoas — e, principalmente, precisava fazer logo algo a respeito das inúmeros paixões que o atacavam pelo caminho.

Pensava nessas paixões enquanto conversava distraidamente com uma das meninas que havia conhecido há pouco. Pensava, principalmente, na voz feminina que havia dito a palavra que o havia levado ao chão há pouco. Era mais uma paixão, sem dúvida — Pynchon era capaz disso — mas uma paixão sem rosto. Ficou feliz de não ter sido nenhuma das suas atuais acompanhantes.

Chegaram a um lago onde havia uma cabana. Apesar do sol ainda brilhando, já passava das 8 da noite e o lugar parecia interessante para pernoitar. Suas novas amigas preferiram continuar o caminho até a próxima cabana e ele partiu em direção ao lago. Sentia uma forte vontade de tomar vinho. Lembrou-se que trazia uma garrafa de cachaça na mochila e talvez fosse uma boa noite para utilizá-la. Precisava fazer amigos. Não havia embarcado no passeio apenas para meditar.

Seguia pela pequena trilha que levava a cabana indicada no mapa quando se lembrou de que a primeira impressão que causara nos pernoites anteriores não havia sido das melhores. Talvez fosse uma boa idéia colocar sua camisa da seleção brasileira de futebol. Ao abrir a mochila e pegar a camisa, deixou cair sua velha edição de “The Crying of Lot 49”, de Thomas Pynchon. Já o havia lido umas quinze vezes, mas nunca nas montanhas da Noruega, motivo sempre nobre para a releitura de um grande livro.

Sentia-se bem com a camisa do Brasil. Sentiu vontade de gritar “Deus é brasileiro” ou qualquer outro ufanismo bobo do gênero, mas logo em seguida se sentiu um tanto estúpido pela idéia. Gostar de seu país natal era um sentimento novo, mas era preciso refrear seus impulsos para não agir como uma criança. Ao se aproximar da cabana logo ouviu um “Velkommen Brasillianer!”: uma linda menina o saudava. Sentiu-se um gênio por ter colocado a camisa.

Entrou na cabana e se deparou com uma linda cena: ao redor de uma grande mesa de madeira, vários jovens faziam um ritual de bebida. Pareciam bastante bêbados — e havia três dias ele não via uma pessoa bêbada, um fato raro na Noruega — e havia muitas meninas entre eles. Era tudo que precisava. Tudo bem que a caminhada havia sido bacana até ali, as paisagens eram realmente incríveis e o verão na Noruega algo que ele nunca experimentara antes, mas, no fundo, queria fazer bagunça e beber, de preferência com lindas norueguesas. E por quê haveria de ser diferente?

Saudou a todos e foi logo chamado ao ritual. Reconheceu a garrafa, já havia visto uma igual em Praga: absinto havia sido sua perdição naquela cidade, e parecia que seria novamente ali. O ritual consistia em encher metade de um copo com absinto, molhar um torrão de açúcar com a bebida em uma colher, colocar fogo, deixar que o açúcar queimasse e se esparramasse em pequenas bolas de fogo pelo copo (que também passava a ficar em chamas), gritar qualquer coisa e beber tudo. Tão fácil quanto andar de bicicleta.

Já estava na sua sétima dose — e seu norueguês fluía como nunca, ou pelo menos ele assim pensava — quando se lembrou da cachaça. Tirou a garrafa da mochila, fez uma breve explicação sobre a bebida e encheu os copos aos gritos de “Brasil!” por parte de todos. Estava radiante.

Não sabia quanto tempo havia se passado desde que chegara à cabana — poderiam ser 20 minutos ou 2 horas, e ainda estava claro, o que não queria dizer muita coisa no verão norueguês — quando um novo grupo de pessoas entrou. Uma delas carregava um livro e perguntou se era de alguém por ali, haviam achado na trilha: sua preciosa edição do Pynchon! Recuperou seu livro agradecendo muito ao jovem que o havia encontrado — jura que não chegou a se ajoelhar, embora os outros digam que sim. Estava para colocar de volta o livro na sua mochila quando foi abordado por uma menina que ele não havia notado direito antes – ela não estava participando do ritual e observava tudo deitada no tapete da sala consumindo seu Snus, embora também estivesse bebendo:

— Ei, brasileiro, você está lendo este livro?

Talvez a menina o quisesse emprestado para ler de noite, ou talvez trocar por outro, isso era comum por ali. Não queria parecer antipático nem nada, mas não gostava que “mãos infiéis” tocassem na sua preciosa edição.

— Bem, na verdade eu já li...umas...28 vezes. Mas nunca aqui nas montanhas da Noruega. Bem, ainda não havia lido na Noruega. É que...

Sentiu-se um idiota (como na maioria das vezes) e tentou contornar a situação, algo que, se já não fazia muito bem em situações normais, fazia ainda pior depois de meio litro de absinto.

— Não é brasileiro...só a bebida, mas não o livro. Não tem muita coisa que presta no Brasil em termos de literatura. Bem, tem um, mas não muito mais do que isso. Dois, talvez. Mas... esse aqui é melhor.

A menina continuava olhando. Talvez fosse lhe dar um soco. Não sorria, não esboçava reação alguma: havia congelado, mais do que o habitual até para os congelantes padrões emocionais nórdicos. Talvez estivesse prestes a soltar uma gargalhada, ou apenas jogar uma torta em sua cara. Talvez...

Mas, neste momento, no Bingo Divino, Deus tirou a bolinha da noite e nela estava escrito: Marco Olsen.

— Nossa, eu amo Thomas Pynchon! Não acreditei quando, de longe, reconheci a Trompa e tal.

Seria verdade? Quanto de alucinação meia garrafa de absinto poderia conter? É claro que sempre havia sonhado com um momento como aquele — e já havia imaginado trocentas vezes como agiria — mas tudo que conseguiu dizer foi:

— Eu prefiro o Arco Íris da Gravidade.

Existem momento mágicos na vida de todo mundo. As pessoas reagem a eles de maneiras diversas — tirando fotos, dando gargalhadas, beijando, chorando, agradecendo a Deus, socos no ar.

Marco poderia ter feito tudo isso, mas não era muito dado a emoções. Pelo contrário, costumava fugir delas. Mas, naquele momento, imbuído de uma emoção extrema e, já apaixonado pela menina, disse apenas:

— Olha, se você disser que também ama o Bandini, eu te peço em casamento!

A menina, obviamente, gostava, como também gostava de Salinger e até fazia o “Silly Walk” do Monty Python. O Bingo Divino caprichava, mas disto ninguém tem dúvidas. Uma norueguesa linda e com os melhores gostos culturais do mundo parecia ser a materialização de todos os sonhos de Marco nesta e nas suas vidas passadas e futuras. Precisava se lembrar de andar com uma aliança no bolso.

Já havia bebido bastante mas, de repente, sentia-se sóbrio. Ficou feliz ao ver que a menina carregava uma latinha de Snus. Convidou-a para a beira do lago, onde poderiam, deitados, conversar ao sabor de Snus (preto, comme Il faut) e quem sabe, com sorte, observar a aurora boral.

- Com prazer - respondeu a menina - embora não estejamos boreais o suficiente para isso.

Sorriu internamente com a bem humorada resposta e caminharam para o lago, onde passaram a noite conversando, sem parar por um minuto sequer, até adormecerem, juntinhos, como se nunca houvesse sido diferente.

Acordou com o sol na cara e uma sede terrível. Levantou-se, bebeu água do lago e olhou para a menina. Lembrou-se que havia se esquecido de lhe perguntar o nome. O sol na cara a deixava com um aspecto ainda mais apaixonante - bochechas rosadas sempre foram um bônus em sua escala de beleza feminina.

Cutucou-a com o pé e, quando pareceu um pouco desperta, lhe perguntou o nome.

Ela deu uma longa bocejada, abriu levemente seus lindos olhos azuis e, com um sorriso discreto, lhe respondeu de modo angelical, tão doce, que nem trinta Yeats juntos seriam capazes de produzir tamanha poesia em tão curto espaço de tempo.

Ela era um anjo encarnado, e ele estava terrivelmente apaixonado como nunca estivera antes. Definitivamente, havia encontrado a mulher de sua vida!

Entrou correndo na cabana, juntou suas coisas, colocou a mochila nas costas e, gritando, fez o que todo homem faria numa hora dessas: fugiu.

6 comentários:

clasaadi disse...

Tava td indo mt bem até o cara cutucar a menina adormecida com o pé! Na boa, né? Não que eu esperasse algo diferente de um alter-ego seu...

Dr. Edward Pointsman disse...

Mas é um cutucão carinhoso, daqueles bem de leve, com o dedão e tal. Se fosse um filme haveria um jogo de luz bergmaniano nessa cena: ela deitada, ele em pé com o sol nascente às costas fazendo sombra no rosto dela, na hora do sorriso o sol cobre parte do rosto, Kings of Convenience tocando ao fundo.

clasaadi disse...

Não existe such a thing as cutucão carinhoso com dedo do pé, learn that for your life!
Ew, imagino logo um dedão cabeludo com unhas mal cortadas :s

Pedro Eboli disse...

Putz...só faltava você dizer que a menina sabia fazer a voz do capitão.

Acho que está naquela hora de sugerir um bom psicólogo.

Dr. Edward Pointsman disse...

Se ensinar, a menina faz. Tenho certeza que ela acharia engraçado pra burro.

Psicólogo? Isso é ficção! Talvez um professor de português ou uma oficina de redação ou coisas do gênero, mas psicólogo não vejo muito motivo.

Unknown disse...

Desculpa a ignorância, ou a intrometência, mas o nosso amigo não deveria estar caminhando pelas florestas norueguesas fazendo o silly walk?

Clarice, por isso ele teve que cutucá-la com o dedão do pé. Poderia cair no lago se tivesse que se abaixar.

Alguém aceita um cafezinho?