sexta-feira, 18 de julho de 2008

Pequenas Biografias

Igor Ivanovitch Svenestky - Inventor do Strognoff


- Mas quem pf#*#%&@ cortou essa carne?

Atribuir grandes feitos da humanidade ao acaso seria assaz determista para uma mente do Sec. XXI, mas talvez isso não esteja muito longe da verdade. Pelo menos no caso de uma de nossas maravilhas culinárias, o strogonoff.

Corria o ano de 1714. São Petersburgo, a nova capital do Império Russo fundada 11 anos antes, ainda não era o que se poderia chamar de cidade (mas, ao contrário de Brasília, tornou-se uma cidade posteriormente- e que cidade!). Construída sobre uma grande pântano para ser a face ocidental do Império, a cidade passou a ser capital em 1712. Neste ano boa parte da corte foi "gentilmente convidada" por Pedro, o Grande, a se mudar de Moscou e ajudar na ocupação e ocidentalização da cidade.

Foi mais ou menos por esta época que Igor voltou ao seu país.

Filho de um casal de mujiques dos Montes Urais, Igor, ainda jovem, desenvolveu o gosto pela gastronomia. Passava horas em busca de cogumelos e ervas para experimentar novas receitas para os poucos dias em que a família conseguia comer carne. Cansado da pobreza e isolamento da região, saiu de casa ao 14 anos rumo à Meca da boa mesa, Paris.

Os primeiros anos na cidade luz foram duros. Demorou para aprender o francês e teve que se virar com restos de comida que conseguia pegar nas lixeiras dos restaurantes. Após três anos de miséria, porém, viu sua vida mudar ao salvar de um atropelamento uma pequena criança, filha de uma casal da corte francesa. Muito agradecida, a mãe resolveu acolher o jovem em sua casa e passou a cuidar de sua educação.

Igor passou a viver em um ambiente que nunca imaginou existir, mesmo estando entre os servos. Era muito querido por todos. Passou a trabalhar na cozinha ajudando na preparação dos molhos. Rapidamente, se tornou um dos melhores saucier da corte. Aos 20 anos de idade atingiu o que, pensava, seria seu auge: preparou um dos molhos de faisão para um jantar de recepção para Guilherme III, que havia se tornado Rei da Inglaterra recentemente. "Eu servi o Rei da Inglaterra!", passou a bradar pelo quatro cantos o jovem Igor.

Pouco tempo depois, tornou-se Saucier do Palácio Real, onde passou a trabalhar com o grande Bernard de Politisierre, considerado um dos pais da moderna cozinha francesa. Nem em seus melhores sonhos o pobre filho de Mujiques dos Urais poderia se imaginar na posição que estava.

Alguns anos depois, Pedro, o Grande, manda uma delegação à França para estudar o modus operandi da corte e implementá-lo na Rússia em seu desejo de ocidentalização. Não bastava uma nova capital com ares ocidentais: era preciso mudar os hábitos da arcaica e um tanto grosseira nobreza russa de então. Igor passou a ser o homem oficial de ligação das artes culinárias com a delegação russa.

A vida na corte francesa não era de toda má - muito pelo contrário - o que foi levando a delegação russa a adiar sua volta - não parecia nada interessante ter que ir a ao pântano que ainda era São Petersuburgo abandonando as maravilhas que, anos mais tarde, levariam o povo francês a ser insurgir contra seus governantes.

Mas, em 1712, Pedro transfere oficialmente a capital de Moscou para São Petersburgo e ordena a volta da delegação: todas as famílias nobres do país estavam de mudança para a nova capital e este era o momento da ocidentalização de todos. Com algum pesar Wasilly, o chefe da delegação, anuncia oficialmente a volta. Na véspera da saída, um grande banquete seria oferecido. Wasilly, que havia se tornado um grande admirador dos molhos de Igor, fez apenas um pedido: que Igor fosse o chefe de cozinha para este banquete. Wassily pretendia levá-lo para São Petersburgo e o teste final seria o banquete.

Igor sentiu que seria a chance de sua vida. Uma banquete francês não seria uma boa idéia - havia milhares de bons chefes de cozinha por aí fazendo o mesmo e o maior deles era seu chefe; seguir a cozinha russa tradicional seria uma péssima idéia: há tempos a Europa havia banido os banquetes medievais. Resolveu, então, que este seria o seu grande dia para lançar a Nouvelle Cuisine Russe, uma ponte entre o ocidente e o oriente. Estava a par dos planos do Czar e, em seus grandes sonhos, se imaginava servindo pessoalmente o Czar Pedro, o maior de todos os governanente do mundo!

Sua idéia era simples (mas ele a achava genial): servir um prato principal de carne de vaca mal passada coberta com alho e acompanhada de batatas gratinadas (uma espécie de Filé à Oswaldo Aranha de 300 anos atrás). Todos esperariam dele mais um grande molho, pelos quais era famoso, mas a surpresa mostraria uma versatilidade que o credenciaria a qualquer papel no mundo culinário (e o levaria ao Czar que, sabidamente, sofria de úlceras e não comia muitos molhos).

No grande dia, Igor não cabia em si de excitação. Não havia pregado o olho ao longo da noite pensando em todos os detalhes do grande banquete. Wasilly o adoraria! O ajudariam na cozinha três conzinheiros franceses e oito russos, da delegação. Igor passou a manhã escrevendo um manifesto da nova culiária russa - dizem que o tom panfletário inspirou Marx e Engels algumas décadas mais tarde - e o fato de seu manifesto ter ido parar em Londres só reforça a tese (negada veemente por comunistas históricos). A maior revolução culinária que a humanindade já havia experimentado desde o alimento cozido estava prestes a acontecer!

No meio da tarde se encaminhou a cozinha e juntou todos os seus ajudantes. Discursou durante exatos 55 minutos (não havia cozinheiros suiços e, portanto, tal número pode não ser de todo correto), chorou, gritou, exaltou deuses gregos e divindades africanas, finalizando com o papel de destaque que a Grande Rússia deveria ocupar no mundo pela via gastronômica (o que, de fato, aconteceu no mundo etílico via Vodka, ironicamente, de um certo modo, por culpa dele).Todos então se colocaram a postos e deram início ao trabalho.

Igor se sentia muito bem, alternando russo e francês com perfeição. Tudo já estava devidamente ensaiado e testado, das entradas à sobremesa, com exceção da grande surpresa.

O banquete transcorria sem problemas, comme il faut: a banda tocava, os convidados riam, homens galanteavam mulheres, que ficavam vermelhas. Era chegada a hora de preparação de seu grande prato.

Ficou nervoso pela primeira vez: e se não gostassem? Mas, como não gostariam se era tão bom?

Leoned, um dos cozinheiros russos, já estava completamente bêbeado e, estando sem fazer nada há meia hora, resolveu brincar com os ingredientes da cozinha. Estivera, há muito tempo, em uma taberna romana onde se servia um famoso ensopado para curar ressaca - uma receita de origem francesa e quase dois mil anos, que havia originado a decadência de Roma, segundo alguns historiadores. Ele havia ido parabenizar o cozinheiro pela maravilha e perguntado sobre os ingredientes. Tentava se lembrar deles agora, já antevendo uma terrível ressaca para o dia seguinte.

Não achou sabão de massília e não teve coragem de usar uma galinha com penas. De resto, parecia haver tudo que era necessário: champignon, mostarda, conhaque, molho inglês, alho, cebola, louros, sal, pimenta e outras especiarias. Talvez não fosse tão eficaz quanto o original mas algum sucesso haveria de ter. Pensava nisso quando um grito atravessou o céu:

- Mas quem pf#*#%&@ cortou essa carne?

Igor se desesperara: um dos cozinheiros franceses havia cortado todos os bifes em pequenos pedaços! Igor o havia confundido com um dos russos na confusão e passou uma ordem em russo, que o francês, também embuído do espírito etílico de seus companheiros russos, jurou ser uma ordem em francês para cortar os bifes em pequenos cubos.

Não havia o que fazer: seu bife com alho estava irremediavelmente perdido! Adeus glória, mulheres, bebidas, o Czar! Igor chorava num canto quando viu a panela de Leopold fervendo com um denso molho dentro. Indagou o que era e ouviu toda a história do ensapado anti-ressaca.

E já que estava tudo irremediavelmente perdido, por quê não tentar uma cartada ousada? Mesmo que não fosse o melhor dos pratos, ao menos os banqueteiros não acordariam de ressaca e talvez, com o tempo, tivessem uma boa lembrança do banquete. Talvez ele não fosse enforcado, o que já seria uma grande coisa!

Passou os pedacinhos de carne na manteiga e misturou ao molho. Em 5 minutos, inventou uma grande justificativa para o nascente prato. Não seria a revolução culinária que ele esparava, mas ao menos invocaria o espírito da Grande Rússia que o Czar tanto queria.

Reza a lenda que Wassily, ao terminar seu prato, exclamou: supimpa!

Igor voltou ao seu país de origem como herói. Foi recebido pelo Czar em pessoa, que havia provado seu prato e adorado. Melhor: não sentira os efeitos da úlcera no dia seguinte - e hoje se sabe que o efeito neutralizante sobre a vodka teve grande influência nisto.

Em poucos anos o prato ficou famoso na Rússia - sendo vorazmente consumido da nobreza aos mujiques. Igor, com a fama, passou a beber, pegou sífilis e acabou no ostracismo. O herói que passou para a história foi Wassily que, com o sucesso da missão na França, recebeu o título de Conde de Strgonoff, batizando o prato. O resto é história.

Ironicamente, Igor, aqui resgatado das trevas da história, contribuiu decisivamente para a não ocidentalização de seu país e muitos dos problemas posteriores por ele enfrentados, como o comunismo e o alcoolismo. Espera-se que, com este simples relato, um dos grandes nomes da culinária mundial seja resgatado do ostracismo tendo, 300 anos depois, a fama que merece.

2 comentários:

clasaadi disse...

Não tenho dúvidas que uma "nouvelle cousine russe", linda, loura e peituda pudesse ser a ponte que faltava entre ocidente e oriente (se não descambasse para uma guerra de proporções homéricas, claro), mas dado o teor do post me arrisco a sugerir que nosso humilde Ivan, não contando com primas gostosas, esperasse unir culturas apenas através da "nouvelle cuisine russe" ;)

Dr. Edward Pointsman disse...

Pois é, meu editor na França já estava me cobrando um conto sobre as primas gostosas do rapaz. Ficou chateado pra burro quando soube que não havia nada parecido com isso.

Pobre Igor...